O Sandro William Junqueira, que citei no meu último post, devolveu "o meu apreço, nas palavras de Ramos Rosa", num abraço envolvido nas suas próprias palavras.
Eis o poema, inédito, do Sandro:
O sangue bateu relâmpagos no corpo.
As luzes pontilharam a noite Enquanto o desejo sucumbia faminto e inflamado.
Ainda assim sobra-nos o coração Este velho tambor que conta histórias.
Assisti a uma noite de poesia e música com José Louro, Sandro William Junqueira e Fernando Aires catalisados por António Ramos Rosa. Aconteceu na passada segunda-feira, à noite, por ocasião da "Festa do Livro", em Lagoa. Vi os livros, mas perdi a festa; faltaram as pessoas. Agradeço o bom momento que me proporcionastes e a mais alguns, poucos, apesar dos incómodos provocados por ruídos de trabalho que poderiam ter tido lugar em melhor hora, por crianças que há tempo deveriam estar a repousar e por adultos que, seguramente, não gostam de poesia, pois preferiram estar a conversar, em tom elevado, na sala ao lado. Envio-vos o meu apreço, nas palavras de Ramos Rosa:
Um signo talvez um lábio a cálida harmonia em que o mar concentra a sua imagem uma árvore dócil de abundância suave um anel voluptuoso um sossego de acaso uma anuência à matéria mágica de um minuto um crepúsculo de eternidade amada em volúvel confiança no silêncio
António Ramos Rosa A Intacta Ferida Relógio D'Água, Lisboa 1991
Houve mulheres, no passado fim-de-semana, que se tornaram, até hoje, tema recorrente dos meus pensamentos: Salomé, no filme "O Milagre, segundo Salomé" e Julieta, Inês de Castro, Medeia e Antígona, na peça de teatro "Antes que a noite venha", a que assisti no Teatro Lethes, em Faro. A elas, e às suas intérpretes que lhe deram corpo, este poema:
A vista
A quem é dado, pela janela entreaberta, ver mais de metade da vida, e em voz alta por puro gosto repetir o poema pensado, já os deuses escolheram. Mas se as folhas agitadas pelo vento ocultam, por vezes, o outro lado do muro, não é porque algo nos impede de olhar; mas porque o olhar, sob o impulso do vento, segue as correntes contraditórias até algures, na atmosfera, onde imobilizado perscruta e espera.
Dedico à Sara, que se atreveu a abandonar a sua rota de cabotagem e mergulhar na noite, desnoiteando:
De Ibn Sara, de Santarém (? - 1123)
ah, a noite que eu sem fim passei!... o tempo alargava a sua duração e dava-lhe o cerne do que na vida amei. comentaram alguns, pela noite fora, como se ia escoando a sua mansidão. mas a noite apenas consentia a aurora...
das nuvens tão denso era o breu que já não se sabia o que era terra ou céu. ao longe o raio entre trevas se escondia: era um negro que entre lágrimas sorria.
brandi alto o sabre da minha vontade e tingi o manto dessa mesma aurora ao ferir o colo da escuridade com o sangue da noite pela noite fora.
Adalberto Alves O meu coração é árabe Assírio & Alvim, Lisboa 1998
P.S. Ibn Sara já constava da minha galeria de poetas, na coluna da direita, em Ibn Sara, de Santarém, com A Brisa e a Chuva.
Observada pelo seu amante a partir de um outro compartimento, enquanto compõe as suas meias, eis Salomé.
O extremo cuidado posto nas imagens, na luz, na abordagem da câmara, como quem sugere leituras para além do imediatamente visível; a contenção emocional dos actores, conferindo-lhes uma maior profundidade; a caracterização da época sem insistência nem exagero nos pormenores, mas vivamente presente; o fluir suave da teia romanesca até à conclusão que se adivinha e se sugere; a apresentação do " milagre de Fátima" sem polemizar, dando lugar à interpretação subjectiva do espectador, como nos sucede na própria vida; a música, sem enfatizar; o som, natural e audível, como nunca antes sentira no cinema português.
Gostei muito, mesmo muito, sinceramente, e recomendo.
Pode parecer que o texto que escolhi para homenagear Agustina Bessa-Luís, e que retirei de Vale Abraão, Guimarães Editores, 3ª edição, Lisboa, 1996, tenha a ver com a minha predilecção por motivos andalusinos (vocábulo utilizado por Adalberto Alves, o de O meu coração é árabe, quando se refere à civilização do Al-Ândalus, período da presença islâmica na Península Ibérica). Pensando melhor, até talvez seja verdade. Ocorreu-me este romance porque o mais divulgado e conhecido, via cinema e Manoel de Oliveira, e porque à memória me acudia uma determinada descrição do Vale do Douro que me teria particularmente agradado. Face ao texto, ficou-me a dúvida sobre o que me teria efectivamente despertado a memória. Será que este apelo pela descrição do Vale do Douro não estaria associado às referências mouriscas e à figura de Almansor? Nunca o saberei.
" (...) há na curva que apascenta o rio pelo rechão areento, ao sair da Régua, um vale ribeiro de produção ainda de vinhos de cheiro e que se estende, rumo à cidade de Lamego, comarca a que pertence, até às águas medicinais de Cambres. É o Vale Abraão, com as suas quintas e lugares de sombra que parecem acentuar a memória de um trânsito mourisco que de Granada trazia as mercadorias do Oriente e, porventura, os gostos de pomares de espinho e dos vergéis de puro remanso. Almansor teve residência em Lamego e escreveu aí a história da campanha com os seus aliados, os condes moçárabes. Talvez por isso, porque corre um fio de tinta desde a fronteira duriana até às águas do Tedo e do Távora, os poetas e os letrados obstinados produzem as suas obras naquele território que, antes do trato da Índia, conheceu verdadeiro esplendor agrícola e comercial. (...) "
Assim acendemos o n(é)on da futilidade: peregrinando, inebriados pelo foguetório; mergulhando na imbecilidade do anoitecer; recusando-nos, incapazes da madrugada.
Ainda do "diário" de Casimiro de Brito, que já aqui usei variadíssimas vezes, retirei, com data de 18 de Maio de 2000:
" O meu corpo sabe mais do que eu. Quando penso para onde quero ir, vou para lugares errados. Mas quando me deixo levar pelo corpo, ele segue a brisa ou um veio de água, um cheiro, uma palavra, uma mulher. Assim devia ser. "
Em post de 26 de Abril, Mordomias da GNR, 30 anos depois, cujo conteúdo remeti para o Comando da GNR e para o Ministério da Administração Interna, criticava a utilização abusiva do adro da Ermida de Santo António, em Armação de Pêra, como parque de estacionamento das viaturas dos agentes da GNR local e seus amigos.
Este fim-de-semana, de volta a Armação, não detectei a presença abusiva de tais viaturas. Fosse por mera coincidência ou por atitude face ao reconhecimento do erro, apraz-me verificar a melhoria da situação.
As ravinas podem cair com o peso da chuva: por entre as fendas, revelam-se grutas, caminhos para o centro que outrora se sonhou. Não importa que esses túneis estejam fechados; e que os grandes lagos subterrâneos guardem, intacta, a luz negra da origem. Ao ver a terra que escorre, devagar, ameaçando as casas em baixo, uma antiga inquietação me impede de avançar, em direcção ao fim da estrofe: como se, também aqui, o movimento das vogais iniciasse o brusco desmoronar do verso.
Nuno Júdice Poesia Reunida (1967-2000) D. Quixote, Lisboa, 2000
Casimiro de Brito, no seu "diário" do ano 2000, Na Barca do Coração, Campo das Letras, Porto, 2001, na entrada que apresenta a data de 12 de Maio, escreve assim:
" Tempestades, todos os dias, nos copos de água suja que eles bebem. Que fazer? Como conviver, à distância que seja, com os políticos, quando só vão subindo aos galhos da pirâmide (neste tempo de relva e de areia) os mais medíocres? A violência ou o escárnio, diz Cossery, podem ajudar. Mas ajudam pouco. Também aí eles colhem comissões e dividendos: traficam-se armas e imagens como quem vai ao mercado comprar laranjas. Escravizam-se jovens tanto na produção como no consumo: roleta em que todos perdem, menos a banca, o múltiplo croupier. O desprezo talvez ajude, a indiferença dos peões, o desinteresse das plateias, a ironia dos intelectuais - mas isso que lhes importa? Numa sociedade democrática, os votos legitimam tudo, e eles dividem-nos maquiavelicamente. Ora governas tu e eu governo-me, ora governo eu e tu governas-te. E damos um pouco do que eles querem: pão (ma non tropo) e circo (o mais possível) - infalível! Terrível será o dia em que acordem a pensar que nada levarão consigo, nem o dinheiro, nem a maldade, nem as honrarias. Ficam imagens desvanecidas. Nem passam pelo "nada essencial" de que fala Heidegger. "
Soube, pela Janela Indiscreta, deste artigo do Público, que nos conta como o maestro Daniel Barenboim decidiu oferecer, a um conservatório palestiniano de música, os 100 mil dólares referentes ao Wolf Prize, prémio israelita semelhante ao Nobel, que ontem lhe deve ter sido entregue no Parlamento de Israel.
Atitudes como esta, controversas necessariamente, colocam interrogações, fazem-nos pensar que é possível entendermo-nos sobre o que parece ser acessório e daí construir diálogos sobre o que parece ser fundamental. É interessante saber que foi um músico a devolver esta "pedra", de onde habitualmente chovem balas.
Assisti durante este fim-de-semana, em Silves, ao lançamento da 2ª edição de Al-Mu'tamid, poeta do destino, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, de Adalberto Alves, numa iniciativa do CELAS (Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves). Trata-se de uma edição revista e aumentada com novos poemas, novas versões de poemas e comentários.
A apresentação do autor e da obra esteve a cargo de Tiago Setil, licenciado em Estudos Árabes e Islâmicos, em Córdova, e que prosseguiu estudos superiores noutros países de língua árabe, nomeadamente na Tunísia. De regresso a Portugal, vê-se confrontado com a situação de não conseguir obter equivalência académica para os seus estudos, dada a ausência, em Portugal, de qualquer curso universitário completo na sua especialidade. Insólita esta situação, num país com tão profusa e elevada herança cultural de proveniência árabe e islâmica.
Revelou-nos Adalberto Alves que Tiago, para sobreviver, trabalha num local onde nada pode oferecer da sua formação específica - uma sapataria. Digam-me lá se não somos um país rico em capital humano, para se dar ao luxo de desperdiçar gente tão capacitada!?
O título do post tem a ver com um poema que Adalberto Alves nos deu o prazer de ouvir recitar, que consta das Mil e uma noites, precisamente das noites 180º e 866º, e nos fala de uma mulher do harém de Al-Mu'tamid que, por receio de quem espia, não se atreveu a visitá-lo naquela noite.
Inocultável
por receio de quem espia com muita inveja a roer ela não veio nesse dia, pra assim traída não ser pla luz que do rosto esplende, plas jóias a tilintar, e plo perfume do âmbar a que o corpo lhe rescende.
é que ao rosto, com o manto, tapá-lo 'inda poderia, e as jóias, entretanto, facilmente as tiraria, mas a fragrância do encanto pra ocultá-la que faria?
Abu-l-Fadl Ibn al-A'lam, viveu em Santa Maria (Faro), no séc. XII, no tempo dos almorávidas.
para beijá-la avancei e o desejo não se vergou ao medo. ela disse: vais desonrar-te cedo! respondi: é pecado, sei! mas algo supera essa mágoa: é morrer de sede dentro d'água.
ALVES, Adalberto O meu coração é árabe Assírio & Alvim, Lisboa, 1998
Hoje, em vez do poema luso-árabe que faço por manter na primeira página deste meu blog, quero trazer-vos um texto, como um grito, de Borges Coelho, o historiador de Portugal na Espanha Árabe, Editorial Caminho, Lisboa, 1989:
" Aceita-se, geralmente, a contribuição do Islão na propagação das técnicas de rega, da bússola, do papel e no aumento do pomar peninsular sem se ousarem conclusões necessárias. A fisionomia do Portugal agrário moldou-se em boa parte pelo arquétipo do Ândalus mourisco, mesmo quando não é ele o autor das técnicas, mas o seu último transmissor. Apaguem-se por um momento dos campos de Portugal as sombras do pessegueiro, do limoeiro, da laranjeira, da nespereira, da ameixoeira, da alfarrobeira; recue-se para Sul a oliveira, suprimindo a comercialização do azeite e da azeitona; rareiem-se as amendoeiras e as folhas largas das figueiras com o seu almeixar; suprimam-se as noras, os alambiques, as alquitarras; intensifique-se a vinha no Alentejo e no Algarve; retire-se da periferia das cidades a mancha verde das hortas, dos meloais, das forragens; castrem-se os cavalos de Alter; afoguem as azenhas ou calem o canto dos moinhos de vento (...); abatam a camartelo as muralhas do Centro e do Sul cujo risco, para lá das reparações e dos acrescentos posteriores, foi obra dos seus alarifes ou arquitectos; desmontem as almenas, as abóbadas do chamado gótico alentejano, as fontes abobadadas; piquem as taipas, os estuques, destruam as casas de adobe caiadas de branco por dentro e por fora; enterrem os azulejos; queimem as esteiras, as alcofas, os capachos, os tapetes; rachem os alguidares; tentem destruir os couros, os arreios, as grades geométricas. Que nos fica? "
Diria ao Borges Coelho que ainda não conseguimos acabar com tudo, mas temos feito um bom trabalho. Lá isso temos!
Não é todos os dias que um familiar comemora o seu 90º aniversário, tanto mais quanto se trata do nosso último tio. Estive ausente, por terras do Baixo Tâmega, para o poder abraçar e integrar a festa que lhe promoveram. Foi bom vê-lo assim, lúcido e de aparência saudável. Também foi bom voltar ao Tâmega e às recordações das férias de verão da minha juventude, e de sempre, pois nunca abandonei esta minha insistência em manter viva a raiz nortenha, que é parte integrante de mim e que senti tão viva na afabilidade das pessoas que me conhecem e me reconhecem, nos odores que perfumam o ar, na presença constante da água, corrente, na paisagem onde o horizonte é a montanha da outra margem do rio, pintada de verde e casario. Ah, e os foguetes, que parece que rebentam sempre que lá estou, como que para me receber.