segunda-feira, março 07, 2005

Os Passos dos meus passos

O texto de hoje foi escrito há cinco anos e publicado num jornal de Silves - O Grés - que terminou ao fim de um ano de publicação.
Trago-o hoje ao blog porque Os Passos, em Silves, tiveram lugar neste Domingo e, ao ouvir a banda e ver passar a procissão, a memória funcionou.

Passos em Silves, Março de 2005, © António Baeta Oliveira

  • Os Passos dos meus passos
    (Alcantarilha e Silves)


    As procissões dos Passos, até cerca dos meus dez anos de idade, surgem-me à mente de duas formas diferentes. Não consigo restabelecer qual das duas formas é a mais antiga, qual a que me faz evocar os mais remotos sentimentos, mas são perfeitamente distintas as imagens e as sensações que cada uma delas me desperta.

    Em Alcantarilha, onde vivia com os meus pais, o Prior Montes, acolitado pelo Zézinho Sacristão, permitia-nos entrar em zonas que não nos eram facultadas noutras épocas do ano. Toda aquela malta pequenina, da minha idade, tinha acesso ao mundo da descoberta e da aventura do que ficava por detrás dos altares, por detrás dos santos, por detrás do que habitualmente só nos era permitido ver pela frente. Era um mundo misterioso e não era sem receio que nos aventurávamos pelo corredor que saía da sacristia e conduzia às traseiras da capela-mor ou até mesmo, para os mais afoitos, ao sótão sob o telhado. Em arcas e outras caixas de madeira eram preservados dos olhares indiscretos da criançada as coroas de espinhos, as lanças com esponjas, supostamente cheias de vinagre, os martelos que teriam pregado os pés e as mãos do Senhor, as escadas que ajudariam a retirar Cristo da cruz , as cordas que, à volta da cintura, apertariam as pequeninas túnicas roxas que iríamos envergar naquela procissão do Senhor dos Passos.

    Em Silves recordo a alegria de um fim-de-semana diferente. As minhas tias possuíam, no rés-do-chão das "Casas Grandes", frente à ponte, uma mercearia e uma casa de pasto. Dormir em Silves era sair da nossa casa e dos nossos quartos habituais e pernoitarmos em casa das minhas tias no "quarto grande", onde dormíamos todos; eu e os meus irmãos em colchões improvisados no chão.

    Na manhã de Domingo era a azáfama da chegada das "freguesas" que vinham dos mais remotos lugares da freguesia: do Poço Barreto, da Vala, do Vale da Vila, da Horta da Ribeira, dos Bastos, eu sei lá....

    - Menina Bia! Menina Beatriz! Menina Laura! Podemos deixar aqui as coisas?

    As "coisas" eram os sapatos velhos que calcorreavam os poeirentos caminhos até chegar a Silves ou a roupa que se trocava por outra mais nova, mais lavada e mais condizente com a solenidade da festa dos Senhor dos Passos.

    Depois eram as amêndoas da Páscoa e os miúdos das "freguesas" lambuzados pelas amêndoas de cinco tostões (umas amêndoas grandes, que mal cabiam naquelas bocas pequeninas), até chegar a nossa vez de ficarmos também assim, bem lambuzados. (...)

(Continua amanhã)

3 comentários:

eduardo disse...

Bom dia, António.
Então cá estarei.

eduardo disse...

Voltei mais cedo para agradecer a dica.
Mas se verificares melhor, também acompanho as crianças de Ouguela e o trabalho que o professor António Mendes tem por lá. Desde o princípio. E ainda o ABC dos miúdos onde podes descobrir blogs dos mais novinhos. É giro o que eles se lembram de escrever.
Mais uma vez, grato pela tua atenção.

Torquato da Luz disse...

É claro que, no tocante a Alcantarilha, vivi isso tudo - e já nem me lembrava. Aguardo ansiosamente a continuação. O abraço de sempre.